Passagens Paralelas nos Evangelhos
Como a NVI23 pode auxiliar o estudante a compreender o texto original dos Evangelhos
Com o lançamento da Edição Bilingue dos Evangelhos, a NVI23 faz sua primeira aparição impressa no cenário brasileiro e oferece aos estudantes das Escrituras novas ferramentas e análise do ensino de Jesus. Além da óbvia comparação entre as traduções em português e inglês, essa edição do texto dos evangelhos também pode auxiliar o estudante a conhecer melhor o texto grego do Novo Testamento.
Isso acontece pelo fato da tradução da NVI23 equilibrar fidelidade ao texto original e fluência à linguagem atual ao buscar ser o mais literal possível e tão dinâmica quanto necessário. Com o propósito de expressar o sentido do texto original combinado com o desejo de fazê-lo inteligível ao nosso contexto atual, a NVI23 permite ao leitor identificar lugares onde o texto original é similar ou dissimilar em passagens paralelas.
Passagens paralelas são passagens em que os autores das Escrituras contam a mesma história em livros diferentes. Nos Evangelhos isso acontece com muita frequência, e por isso, a Edição Bilingue dos Evangelhos pode ser uma importante ferramenta no estudo da tradição de Jesus.1
Considere por exemplo a história em que Jesus cura um homem com uma severa doença de pele:2 Três Evangelistas (Mt, Mc, Lc) contam essa história com impressionante similaridade, mas o estudante atento notará importantes dissimilaridades.
De Olho no Texto: Texto Original em Paralelo
Para os estudantes do texto do Novo Testamento em seu idioma original, o estudo horizontal dos Evangelho é muito gratificante. Em uma leitura comum do texto das Escrituras nós procedemos verticalmente (de cima para baixo), lendo a história narrada na ordem em que cada um dos autores nos apresenta. Contudo, quando colocamos os textos lado a lado, nós podemos ler horizontalmente (da esquerda para direita) todos os evangelhos ao mesmo tempo. Isso nos permite verificar as diferenças e similaridades em cada um dos relatos oferecidos pelos evangelistas.
Considerando a imagem acima, nós podemos observar alguns detalhes interessante seguindo a numeração das linhas:
Contexto: Note que nesse quadro, apenas Lucas oferece informações sobre o possível lugar onde essa história aconteceu. A expressão ἐν μιᾷ τῶν πόλεων (lit. em uma das cidades) não é tão precisa quanto gostaríamos, mas nos ajuda identificar um tipo de cenário em que essa história teria acontecido. Em termo de ocasião, apenas o Evangelho de Mateus nos oferece alguma indicação: a expressão ἐν μιᾷ τῶν πόλεων (lit. quando desceu do monte) nos ajuda a conectar esse evento com o fim do Sermão da Montanha (cf. Mt 8:1; não incluído na imagem por questão de espaço).
Início: Na segunda linha vemos que todos os evangelistas nos contam sobre a chegada de um leproso (ou alguém com severa doença de pele). Mas, note que apenas Mateus e Lucas dizem que essa chegada tenha sido inesperada: ἰδοὺ é uma expressão que atribui um certo suspense a cena, ou até mesmo um tipo de ação inesperada. Mateus e Marcos descrevem esse homem como alguém λεπρὸς (normalmente traduzido como lepra) ao passo que Lucas o descreve como ἀνὴρ πλήρης λέπρας (lit. homem coberto por lepra).
Perspectiva do Homem: Somente Lucas nos informa que esse homem viu Jesus: ἰδὼν δὲ τὸν Ἰησοῦν (lit. vendo Jesus).
Atitude do Homem: Cada evangelista apresenta aqui uma versão do evento, e com isso expressam sua própria teologia: em Marcos o homem se ajoelha, em Lucas ele se prostra com rosto em terra, ao passo que em Mateus ele manifesta adoração.3
O ato de ajoelhar-se diante de Jesus em Marcos, inclui um elemento implícito de respeito, ao passo que em Lucas a mesma cena tem em forte elemento de respeito explícito. Aliás, a expressão usada por Lucas aqui é tão intensa, que a única vez que tal expressão πεσὼν ἐπὶ πρόσωπον (pesōn epi prosōpon) é usada na LXX ela descreve um ato de adoração (Dn 2:46). Mais interessante ainda, é que a única outra vez que a mesma expressão é usada no NT, ela também descreve um ato de adoração (1Cor 14:25).
Digno de nota é que a versão de Mateus descreve isso de modo mais explícito possível, a ponto dos tradutores aqui interpretarem a aproximação do leproso como em ato de adoração. Digno de nota que Mateus usa o verbo προσκυνέω 13x (Mt 2:2, 8, 11; 4:9-10; 8:2; 9:18; 14:33; 15:25; 18:26; 20:20; 28:9, 17), ao passo que Lucas usa apenas 2x (Lc 4:7; 24:52), bem como Marcos (Mc 5:6; 15:19). Ou seja, προσκυνέω tem uma importante significância para Mateus. O mais interessante é que Mateus usa o termo 6x em textos relacionados a Jesus Cristo sendo que o mesmo uso tenha qualquer paralelo com os outros evangelhos (2:2, 8, 11; 8:2; 9:18; 15;25). Isso parece demonstrar a importância Cristológica desse termo para Mateus.
Clamor do Homem: Apenas Marcos e Lucas apresentam o clamor do homem, mas cada um usa um termo diferente: Marcos usa o verbo παρακαλέω, que poderia ser traduzido aqui como suplicar; Lucas usou o verbo δέομαι, que poderia ser traduzido como rogar.4
A Apresentação do Clamor: Todos os evangelistas apresentam uma frase de introdução ao conteúdo do clamor: Mateus, Marcos e Lucas usam a forma participial (Masc.Sing.Non, Pres.At) de λέγω, mas somente Marcos explicita a quem o homem se dirige (αὐτῷ; lit. para ele). Marcos também é o único evangelista a usar a conjunção ὅτι como marcador de introdução de discurso.
Identificação: Uma vez que apenas Marcos identifica a quem o homem dirige o seu clamor, Mateus e Lucas adicionam o vocativo de κύριος (lit. Senhor), uma forma respeitosa de se dirigir a alguém que se entende como superior. Considerando o contexto dos dos evangelistas, é possível que ambos descrevam mais do que apenas respeito aqui.
Humildade: Note que todos os evangelistas reportam o dito do leproso de maneira idêntica: ἐὰν θέλῃς (lit. se quiseres). A postura do leproso não era dúvida a respeito do poder de Jesus em curar, mas sim da permissão.
Pedido: Note novamente que os evangelistas reportam ipsis literis o pedido do homem: δύνασαί με καθαρίσαι (lit. podes purificar-me).
Perspectiva de Cristo: Somente Marcos nos conta que Jesus foi movido por compaixão;
Ação de Cristo: Todos os evangelistas descreve o evento com os mesmos termos, com uma pequena mudança na ordem das palavras (que não faz nenhuma diferença na tradução): Enquanto Marcos diz ἐκτείνας τὴν χεῖρα αὐτοῦ ἥψατο, Mateus e Lucas trazem καὶ ἐκτείνας τὴν χεῖρα ἥψατο αὐτοῦ. Em ambos os casos a tradução ficaria: Jesus estendeu a mão e tocou nele.
Introdução da Fala de Cristo: Como aconteceu com a introdução da fala do leproso, apenas Marcos apresenta a quem Jesus se dirige: (αὐτῷ; lit. para ele). Note também que enquanto Mateus e Lucas usam o mesmo verbo para introdução da fala (λέγων; lit. dizendo), Marcos usa o presente histórico (λέγει; lit. diz). O uso de Marcos adiciona uma camada dramática a cena e convida o leitor a participar do evento de maneira mais direta um evento do passado, como se o evento estivesse se desenvolvendo no presente do leitor.
Fala de Cristo: Mais uma vez, os três evangelistas apresentam o dito de Jesus com exatamente os mesmos termos: θέλω, καθαρίσθητι (lit. quero, seja purificado).
Milagre: Todos os evangelistas descrevem que o milagre acontece imediatamente!
Cura: Marcos e Lucas nos contam que o resultado imediato da fala de Jesus foi ἀπῆλθεν ἀπ’ αὐτοῦ ἡ λέπρα (lit. a lepra o deixou). Note a mudança na ordem das palavras.
Purificação: Marcos e Mateus nos contam que o homem também foi purificado: Marcos diz καὶ ἐκαθαρίσθη (lit. e ele foi purificado) ao passo que Mateus diz ἐκαθαρίσθη αὐτοῦ ἡ λέπρα (lit. ele foi purificado da lepra).
Como se pode observar, o estudo horizontal dos evangelhos em grego nos oferece detalhes a respeito da narrativa dos evangelistas que nem sempre podem ser observado em nossas traduções. Esse tipo de estudo nos permite ver ao mesmo tempo a descrição dos eventos narrados, bem como as ênfases teológicas de cada autor. Como vimos nessa breve apresentação, a leitura paralela dos evangelhos pode enriquecer e muito nossa leitura das Escrituras.
De Olho na Tradução: NVI23 em Paralelo
Nesse sentido, entendo que a NVI23 pode ser um importante recurso para a leitura paralela dos Evangelhos. Considerando a história da cura e purificação de um leproso, podemos notar que essa tradução mantém ao mesmo tempo fidelidade ao texto original e fluência em nosso idioma atual. Por buscar ser o mais literal possível e tão dinâmica quanto necessário, a NVI23 apresenta uma tradução que traz os mesmos termos em português em lugares em que o texto grego é idêntico.
Considere as falas do leproso e de Jesus: os três evangelistas apresentam a fala de Jesus com os mesmos termos e na mesma ordem, bem como o fazem os tradutores da aqui. O mesmo pode ser dito a respeito da ação de Cristo, que estende sua mão e toca no leproso antes de curá-lo. Note também que as mesmas similaridades e dissimilaridades vistas no texto grego foram mantidas na tradução.5 Nesse sentido, a NVI23 oferece uma tradução equilibrada, priorizando a fidelidade sem sacrificar a fluência.
Esse tipo de fidelidade ao texto original é vista em traduções mais literais, que geralmente falham em a equilibrar com a fluência da linguagem contemporânea. Por outro lado, em traduções em que a fluência é prioritária, nem sempre os tradutores são consistentes em apresentar as similaridades do texto.6
Por isso, a Edição Bilingue dos Evangelhos nos permite estudar os textos paralelos e observar onde os tradutores da versão portuguesa mantém a mesma forma textual como indicativo de similaridade no texto original. Esse estudo é fácil de se fazer nessa edição pois ela adiciona as passagens paralelas junto com os títulos das histórias. Desse modo, o estudante das escrituras poderá identificar em português ocasiões em que o texto original é similar e dissimilar entre os Evangelhos.
Nós chamamos de tradição de Jesus o material utilizado pelos evangelistas para compor literariamente os seus documentos. Cada um teve, ao seu modo e ao seu tempo, acesso a um material base da história de Jesus que foi usado como ponto de partida da escrita do seu evangelho. Esse material base é derivado da tradição de Jesus, que chegou até eles em forma de tradição oral e escrita.
O termo grego λεπρὸς/λέπρα não era usada no mundo antigo para se descrever hanseníase, a doença que hoje conhecemos como lepra. Para ver uma apresentação histórica dos termos gregos aplicados a doenças, considere o capítulo seis do livro Diseases in the Ancient Greek World de Mirko D. Grmek (1989). Até onde tenho conhecimento, essa é a mais importante descrição da história da identificação da lepra e do uso de λεπρὸς/λέπρα na literatura grega antiga.
Para um estudo diacrônico do verbo προσκυνέω no período anterior, concomitante e posterior ao período do NT, considere o artigo “Adorar a Jesus é Idolatria: Como a Sociedade Torre da Vigia Distorce o Ensino da Escritura”.
A diferença em português não parece muito significativa aqui, mas a diferença entre παρακαλέω (parakaleō) usado por Marcos e δέομαι (deomai) usado por Lucas é mais evidente em grego. No livro de Marcos o autor usa o verbo παρακαλέω 9x e em todas as ocasiões ele descreve o pedido desesperado que antecede uma intervenção miraculosa de Jesus (Mc 1:40; 5:10, 12, 17-18, 23; 6:56; 7:32; 8:22). Em Lucas o autor usa o verbo δέομαι 8x, sendo quem em quatro ocasiões o termo é usado em um contexto que antecede a realização de um milagre (Lc 8:28, 38; 9:38, 40). Entretanto, em três ocasiões o termo é usado no contexto de pedido ou súplica em referência à oração a Deus (Lc 10:2; 21:36; 22:32). Considerando o fato que Lucas usa elementos de respeito mais explícito que Marcos, é interessante considerar o uso desse verbo aqui como indicação de uma visão exaltada de Jesus.
Além disso, existe um importante elemento de consistência na tradução aqui: Note que a linha 6 os tradutores optaram por inlcuir o verbo de fala em Mateus, mas não o fizeram em Marcos e Lucas. Uma vez que o termo é usado no texto original, por que isso aconteceu? Note que em Mateus os tradutores optaram por traduzir προσεκύνει αὐτῷ (lit. ajoelhou diante dele) na linha 4 como um ato de reverente adoração. Contudo, o verbo adorar em português não é um verbo tipicamente usado para descrever ou introduzir falas, e portanto, nesse caso os tradutores adicionaram o verbo dizendo na linha 6. Isso auxilia o leitor a compreender o conteúdo da adoração. Por outro lado, em Marcos e Lucas os autores já haviam utilizado verbos de fala: em Marcos o autor usa παρακαλῶν αὐτὸν (lit. suplicou-lhe) e em Lucas ἐδεήθη αὐτοῦ (lit. rogou-lhe). Como o português difere do grego no uso combinado de verbos de fala, os tradutores optaram por evitar a redundância da construção suplicar dizendo ou rogar dizendo (cf. ARC, ACF, ARA).
Considere por exemplo o mesmo texto na NVT: A apresentação do contexto em Lucas é deveras abreviada. Na linha quatro, os tradutores não fazem distinção entre προσκυνέω em Mateus e γονυπετέω em Marcos. Para clarificar o texto, os tradutores adicionam a expressão para ser curado (linha 5) em Lucas e Marcos. Na linha 6 não existe padrão para a apresentação da fala do leproso: uma vez que em Mateus o sentido de adoração não foi usado, os tradutores mantiveram o verbo de fala. Em Marcos, os tradutores usaram o verbo implorar evitando adicionar o verbo de fala (dizendo). Em Lucas, ele mantiveram tanto o verbo suplicar como a introdução da fala (dizendo). Mas, talvez a menos feliz das opções de tradução seja vista na fala do leproso, que em Mateus contém “Senhor” no início da frase como indicativo de reverência/adoração, ao passo que em Lucas foi absorvido no pedido do leproso: “Se o senhor quiser pode me curar e me deixar limpo.” Essa mesma frase foi usada em Marcos, mas não deveria, uma vez que em Marcos o autor não usa o termo para Senhor. Os tradutores também optaram por traduzir με καθαρίσαι (lit. purificar-me) por me curar e me deixar limpo. A mesma tradução acontece na fala de Jesus (linha 13). O que quero dizer aqui não é que a tradução da NVT é uma tradução ruim, mas que não é a tradução mais indicada para a leitura horizontal dos Evangelhos (ou qualquer outro texto paralelo nas Escrituras). Nesse caso, a NVI23 seria uma alternativa melhor para isso.