A primeira edição impressa da Revisão 2023 da Nova Versão Internacional acabou de ser publicada pela Thomas Nelson. De acordo com a publicadora, essa Edição Bilíngue dos Evangelhos “apresenta os textos canônicos de Mateus, Marcos, Lucas e João na Nova Versão Internacional (NVI23), em português, e na New International Version (NIV), em inglês. Conhecidas por sua confiabilidade e clareza, essas versões têm como objetivo comunicar a palavra de Deus ao leitor moderno com o mesmo impacto que o texto bíblico original teve entre os primeiros cristãos.”
Além disso, essa edição conta com a exclusiva fonte Leitura Perfeita, impressão em azul nas palavras de Jesus e diagramação em duas colunas, permitindo ao leitor o contato simultâneo com o texto bíblico em português e em inglês. Como livro impresso, a Edição Bilingue dos Evangelhos é uma importante ferramenta para o estudo dos evangelhos canônicos.
Apresentação
De modo geral, a Edição Bilingue dos Evangelho é uma excelente ferramenta para quem quer conhecer e estudar os Evangelhos a partir da revisão 2023 da NVI. Essa é a primeira vez que vemos uma porção impressa dessa revisão e, por isso, é a primeira vez que se pode analisar criteriosamente essa revisão. Agora, com texto corrido e com todas as notas de rodapé disponíveis no texto, o leitor pode ver em primeira mão o texto dessa edição e compará-lo com a edição da New International Version publicada em inglês.
Um Lembre Histórico
Para os estudantes do Texto do Novo Testamento, essa edição também nos ajuda compreender melhor um pouco melhor o conceito de “códice”, os antigos livros usados pelos escribas para copiar o texto do NT. Via de regra, os manuscritos do NT foram copiados em porções de texto, diferente do que estamos acostumados nos nossos dias. Hoje podemos comprar Bíblias Completas, com todos os livros do AT e NT, como uma grande coleção de livros. Contudo, esse tipo de procedimento era absolutamente incomum nos períodos mais antigos da história da transmissão do texto das Escrituras: dos cerca de 5550 manuscritos gregos sobreviventes, apenas 60 contém todos os livros do NT, e apenas 3 (talvez quatro) desses manuscritos foram produzidos durante o primeiro milênio da história cristã. A grande maioria dos mss neotestamentários continham apenas os evangelhos, ou as cartas de Paulo, ou as cartas gerais sendo que algumas dessas coleções eventualmente continham o texto de Apocalipse. Ou seja, quando você tem em mãos uma versão bilíngue dos evangelhos como essa, você tem algo muito parecido com o tipo de bíblia que muitos cristãos tiveram acesso nos primeiros séculos do Cristianismo.




A Edição e o Texto da NVI23
A produção da Edição Bilíngue demonstra ter todo interesse em apresentar uma versão de luxo dos Evangelhos. Em primeiro lugar devemos observar a beleza estética dessa edição, em particular, o acabamento da capa com a gravação dos versos de João 1:1-17. A leitura do texto grego gravado em couro sintético é fácil e acessível. A acentuação também dá um toque especial ao texto, especialmente para fãs do texto grego como eu. Além disso, a impressão do texto dos Evangelhos em duas colunas com letras relativamente grandes para a página também auxiliam a leitura contínua. Por fim, destaco a presença das notas de rodapé que contribuem em muito o entendimento do texto e de sua transmissão.
No que se refere ao texto, acredito que esta é uma das melhores traduções disponíveis em português. Pela graça de Deus, o Brasil conta com várias traduções sérias e de excelente reputação (cf. ARC, ACF, ARA, NAA, NVI, NVT, NTLH, etc). Contudo, a NVI23 é a tradução bíblica contemporânea que melhor equilibra a fidelidade ao texto original com a fluência da linguagem atual. Isso se deve ao fato de que entre os tradutores responsáveis por esta edição, havia peritos em línguas originais e especialistas em nosso idioma. A colaboração entre tradutores e linguistas resultou em um desenvolvimento significativo da qualidade textual, impulsionado pelos linguistas, sem perder a referência ao texto original, conforme orientado pelos exegetas.
Outro importante elemento dessa tradução é que ela foi realizada com o propósito de ser o mais literal possível e tão dinâmica quanto necessário. Como resultado, o comitê de tradução apresenta um texto fiel, fluente, com honestidade científica e riqueza exegética. Contudo, a parte mais importante dessa edição encontra-se na padronização de termos e expressões. No texto grego dos Evangelho isso é possível ver com clareza: onde os ensinos de Jesus são apresentados pelos mesmos termos e expressões em diferentes evangelhos, os tradutores optaram por manter a mesma forma textual, respeitando o texto original. Em outras palavras, é possível identificar na tradução em português lugares onde a tradição de Jesus nos evangelhos é apresentada com os mesmos termos. Isso também acontece quando os autores neotestamentários citam ipsis literis passagens do AT.1 Desse modo, posso dizer que essa padronização textual é uma das mais importantes contribuições dessa tradução.
Similaridades e Diferenças entre as Traduções
Para os estudantes de diferentes traduções, essa edição também permite que o leitor observe as diferenças e similaridades entre essas versões. Alias, a primeira impressão que o leitor terá será relacionado às similaridades entre elas. Como o texto foi alinhado por parágrafo, é possível comparar com facilidade as duas traduções. Com isso, será possível observar que as duas traduções são, em grande parte, herdeiras de uma mesma tradição textual. No prefácio dessa edição os próprios editores reconhecem que as duas traduções tem o mesmo ponto de partida, a mesma filosofia de tradução e a mesma base textual, o que por isso, não é de se espantar que ambas as traduções sejam muito semelhantes (pg.9).
Por outro lado, o leitor atento notará que existem importantes diferenças entre as duas traduções. A maneira mais fácil de identificar essas diferenças é comparar as notas de rodapé, pois é ali que as diferenças ficam mais visíveis. Considere o texto de Mateus 16:17-20: Nesse texto vemos a resposta de Jesus a Simão (note o texto em azul) apresentando a mudança de nome (de Simão para Pedro), de função (de Pedro para pedra), e de atividade (de pescador para portador das chaves). Contudo, as duas traduções diferem em seu entendimento de como essa atividade iria acontecer: de acordo com a NVI23, Pedro apenas reconheceria o que já havia sido ligado nos céus [terá sido ligado, desligado], ao passo que na NIV, Pedro determinaria o que seria ligado nos céus [será ligado, desligado].
A diferença entre as duas traduções é a interpretação de duas expressões presentes no texto grego conhecidas como particípios perifrásticos: (1) ἔσται δεδεμένον [estai dedemenon] e (2) ἔσται λελυμένον [estai lelymenon]. As duas expressões são semanticamente idênticas e deveriam ser traduzidas do mesmo modo, como as duas traduções o fizeram. Entretanto, a NVI entendeu os dois particípios perifrásticos como referência a um futuro simples (cf. Craig Blomberg, 255; Porter, 48; ACF), ao passo que a NVI23 como um futuro do presente (cf. R.T. France, 626-27, MHN, 3:87-89; ARA).2 Ambas traduções encontram respaldo em gramáticas, comentários e outras traduções, mas apontam para conclusões bem distintas. Esse tipo de diferença de interpretação na tradução pode ser vista em muitos lugares.
A Importância das Notas Textuais
Outro ponto de dissimilaridade entre as traduções são as notas de rodapé de questões textuais. Em primeiro lugar, a NIV apresenta mais notas textuais que a NVI23, especialmente no Evangelho de Marcos. A principal diferença entre as duas edições é que a NVI23 optou por sinalizar apenas as ocasiões em que variantes textuais tem distinções com outras traduções nacionais, ao passo que a NIV inclui variantes textuais conhecidas na tradição manuscrita, independente de não terem sido incluídas em traduções de língua inglesa. Como resultado, a NIV adiciona notas que apenas o estudante versado em aparato crítico poderia compreender.
Em segundo lugar, a NVI23 optou por uma linguagem mais apropriada para descrever variantes textuais em suas notas textuais. Em todos os casos usa-se a expressão “há manuscritos que” acrescentam/omitem essas palavras, expressões ou versos. Essa linguagem mais geral é mais apropriada pois restringe-se apenas a notar uma variação textual na tradição grega do NT sem qualificar ou quantificar. Como os dois extremos mais conhecidos da CT dos nossos dias se dividem em relação à qualidade de uma leitura (texto crítico) ou à quantidade dessa variante (texto majoritário), os editores optaram apenas por notar a existência de variações sem incorrer no risco de induzir o leitor a um dos extremos da CT.
Além disso, essa linguagem evita o recorrente equívoco da expressão “alguns manuscritos” em casos de variantes textuais em que são encontradas na maioria dos manuscritos gregos sobreviventes. Considere o caso de Marcos 11:26, um verso que nem a NVI23 nem a NIV incluiram no texto por entenderem que se trata de uma interpolação baseada em Mt 6:15 feita por escribas ao texto original do Evangelho. Contudo, a nota da NIV diz “some manuscripts include the words similar to Mt 6:15”, ao passo que a versão lusófona traz de maneira mais genérica “há manuscritos.” O problema da NIV nesse caso é que a evidência disponível atesta com clareza que a grande maioria dos manuscritos contém o v.26,3 o que torna deveras imprecisa a sugestão de que a inclusão acontece apenas em alguns manuscritos. Dessa forma, a proposta de identificação de variantes textuais da NVI23 é também superior à da NIV.
A Melhoria dos Títulos
Outro elemento que chama a atenção são os títulos adicionados ao texto, que na NVI23 sempre vem acompanhada de referências paralelas, algo que acontece apenas esporadicamente na NIV. Além disso, o sistema de títulos adicionados ao texto bíblico foi revisitado durante o processo de revisão do texto, e em alguns lugares, melhorado significativamente.
Considere o caso da história da Mulher pega em adultério (Jo 7:52-8:11), uma história que ambas as edições entendem como uma interpolação no texto do Evangelho de João (note o texto em itálico em ambas). A diferença de apresentação nesse caso é visível em dois pontos: (1) a NIV adiciona um texto típico de nota de rodapé como título da passagem; ao comparar o título da NIV e a nota de rodapé da NVI23, você verá que o conteúdo de ambas é deveras similar; (2) A NVI23 restaura o sentido da passagem ao focar no propósito da história e não em sua origem. Sim, essa é uma história de uma mulher pega em adultério, mas esse não é o fim nem o propósito da história: a graça e o perdão oferecido por Cristo o é. Como entusiasta da Crítica Textual do Novo Testamento e defensor da historicidade dessa passagem, acredito que a NVI23 oferece melhor apresentação da história com a mudança do título dessa passagem.
Conclusão
O que podemos dizer sobre essa edição? Em termos de apresentação, pode-se dizer que ela é esteticamente muito bonita. Em termos de edição, pode-se dizer que ela é agradável de ler. Em termos textuais, representa uma das melhores traduções que temos em português, ao equilibrar a fidelidade ao texto original com a fluência necessária da linguagem contemporânea. Em termos de tradução, oferece uma leitura fácil e inteligível, sem perder o referente do texto original. Dessa forma, eu diria que essa é uma excelente versão dos Evangelho, e estou certo que será muito útil para o estudo pessoal, estudo em grupos pequenos ou até mesmo para estudo na EBD.
Esse caso é um pouco mais complicado de se identificar, pois nem toda citação do AT encontrada no NT é exatamente como aquela encontrada no nosso Texto Massorético, ou em alguma tradução grega desse texto. Além disso, não é incomum que os autores do NT citem a LXX em texto que diferem do texto hebraico que conhecemos hoje.
O assunto é certamente complexo e talvez seja necessário um post somente sobre as dificuldades interpretativas dos particípios perifrásticos.
Para os nerds de plantão, o v.26 do capítulo 11 do Evangelho de Marcos está presente tradição do Textus Receptus, do Texto Majoritário e da Família 35. Além disso, é atestado pela tradição manuscrita do NT desde o séc. V (cf. 02 04 05 07 09vid 011 013 017 021 022 030 033 034 038 041 045 1 13 28 33 35 69 118 124 346 579 788 1005 1071 1424 1582 2358 2372 ƒ1 ƒ13 Byz Lect).