O livro de Daniel apresenta, de forma singular e contundente, a soberania de Deus sobre a história, os reinos da terra e o destino de Seu povo. Escrito em um momento em que Israel se encontrava disperso e subjugado sob dominação estrangeira, o livro responde à crise do exílio com uma mensagem teológica clara: Deus não perdeu o controle: Ele continua regendo as nações e conduzindo a história para o cumprimento de Seus propósitos redentores.
O tema principal de Daniel é a revelação do futuro de Israel em meio aos reinos gentílicos que agora dominam o mundo. Ao longo do livro, fica evidente que Deus exalta Daniel como instrumento de Sua vontade, e através dele comunica não apenas eventos futuros, mas a realidade presente de que nenhum império, por mais grandioso que pareça, está fora do domínio do Altíssimo.1
O propósito fundamental do livro é estabelecer que Deus está soberanamente no controle dos impérios que disciplinam Israel, e que essa disciplina, embora dolorosa, é temporária e conduz a um fim glorioso: a restauração de Israel e sua bênção final no reino do Messias.
Antes, porém, o povo de Deus passará por tribulações severas, inclusive perseguições escatológicas sob o domínio do anticristo. Ainda assim, o livro afirma que o reino de Deus será estabelecido para sempre. Esse reino não será destruído nem entregue a outro povo (Dn 2.44; 7.14, 27).
Assim, a soberania divina além de ser um tema doutrinário central no livro de Daniel, é também uma lente teológica por meio da qual todos os eventos do passado, presentes e futuros devem ser compreendidos. Por isso, nesse artigo, pretendo apresentar a soberania de Deus a partir de três perspectivas: (1) Os títulos atribuídos a Deus no texto original de Daniel (Aramaico/Hebraico); (2) As expressões da soberania divina na seção narrativa do livro, apresentadas por capítulo; (3) As expressões da soberania divina na seção apocalíptica.2 A proposta é passar pelo livro do início ao fim apresentando a soberania divina no livro de Daniel.
I. A Soberania Divina no Texto Original
Embora o livro de Daniel contenha porções em aramaico (2.4b–7.28) e hebraico (1.1–2.4a; 8.1–12.13), a mensagem sobre o domínio de Deus é coerente em ambos os idiomas. Expressões como עִלָּיָא שְׁמַיָּא (ʿIllāyā šemayyāʾ, o Altíssimo dos céus, Dn 5:21) e מַלְכוּתֵהּ מַלְכוּת עָלַם (malkûtēh malkût ʿālam, seu reino é um reino eterno, Dn 4.3, 34; 7.14) revelam um Deus que reina eternamente e cujo domínio não é limitado pelas fronteiras políticas ou cronológicas.
Entre os verbos que reforçam a soberania divina no texto aramaico, destaca-se שׁלט (šālaṭ, “governar”, Dn 5.21), que expressa o domínio exclusivo de Deus sobre os reis da terra, ressaltando sua prerrogativa de estabelecer e destituir autoridades conforme Sua vontade (Dn 2.21). Outro verbo crucial é עֲבַד (ʿăḇaḏ, “fazer”, Dn 4.35), que enfatiza a liberdade soberana de Deus para agir: “Ele faz o que quer com os exércitos do céu e com os habitantes da terra.” Já קֳיַם (qǝyām, “permanecer, ser estabelecido”, Dn 2.44; 6.26) comunica a estabilidade do Seu reino em contraste com a fragilidade dos impérios humanos. O verbo נְתַן (nǝṯan, “dar”, Dn 1.2; 2.37–38) é igualmente significativo, pois revela que toda autoridade concedida aos reis, como a Nabucodonosor, tem origem em Deus, que distribui poder conforme Seus desígnios soberanos.
Outros verbos aramaicos importantes incluem יַהֵב (yahēḇ, “conceder”, Dn 2.21), sinônimo de nǝṯan, que reforça a ação graciosa e intencional de Deus ao conceder sabedoria, reinos e revelações; e גְּלֵא (gǝlēʾ, “revelar”, Dn 2.28, 29, 47), que vincula soberania à onisciência divina: Deus conhece e expõe os mistérios ocultos da história. Também merece destaque שְׁזִב (šeziv, “livrar”, Dn 3.29; 6.27), que mostra que a soberania divina se manifesta não apenas em decisões cósmicas, mas em atos concretos de salvação e proteção aos que Lhe são fiéis.
No texto hebraico, a soberania de Deus é igualmente evidenciada. Verbos como מָשַׁל (māšal, “dominar”, Dn 11.3) e שָׁפַט(šāphaṭ, “julgar”, Dn 7.10, 22) apresentam Deus como rei supremo e juiz universal, cujas decisões são justas e irrevogáveis. O verbo קוּם (qûm, “levantar, estabelecer”, Dn 2.21; 8.23) mostra a ação direta de Deus em erguer líderes e configurar os rumos da história. Além disso, כָּרַת (kārat, “decretar”, Dn 9.26–27) aparece na descrição dos tempos escatológicos, apontando que até os eventos finais estão sob a determinação divina.
O hebraico também registra הֵבִין (hēḇîn, “dar entendimento”, Dn 9.22) e הִשְׂכִּיל (hiśkîl, “fazer compreender”, Dn 9.13), ligando soberania à iluminação espiritual: Deus é quem concede discernimento ao Seu povo sobre os tempos e propósitos da história. Finalmente, o verbo כָּתַב (kāṭaḇ, “escrever”, Dn 10.21; 12.1) alude ao “livro da verdade”, em que estão registradas antecipadamente todas as decisões divinas, revelando que nada escapa ao plano eterno do Senhor.
Esses verbos, distribuídos ao longo do livro em ambas as línguas originais, não apenas descrevem ações divinas, mas constroem uma clara teologia da soberania de Deus: Ele governa, revela, salva, julga, decreta, estabelece, concede sabedoria e conduz a história de acordo com Sua justiça, fidelidade e propósito redentor.
Títulos Aramaicos
Na porção aramaica, que cobre principalmente as narrativas de Daniel e seus companheiros na corte babilônica e persa, a soberania divina se manifesta em contextos históricos e políticos, frequentemente diante de reis pagãos. Os títulos mais recorrentes incluem:
אֱלָהּ שְׁמַיָּא (Elah Shemayya, “Deus dos céus”; Dn 2.18–19, 28, 37, 44) // אֱלָהּ דִּי שַׁמַּיִן (Elah di shamayyin, “Deus dos céus”; Dn 2.19, 37, 44): Estes títulos destacam o domínio celestial de Deus sobre todas as coisas. Usados inclusive por Nabucodonosor, representam o reconhecimento, ainda que forçado, da autoridade suprema de Deus acima de todos os deuses babilônicos.
אֱלָהּ עִלָּיָא (Elah ʿIllāyā, “Deus Altíssimo”; Dn 3.26; 4.14, 21, 22, 29; 5.18, 21): Este título é talvez o mais enfático quanto à soberania divina. Deus é o Altíssimo, não apenas no sentido de superioridade moral ou espiritual, mas como aquele que determina os destinos dos reis e impérios.
מַלְכוּת עָלַם (Malkūtēh malkūt ʿālam, “Seu reino é eterno”; Dn 4.3, 34; 7.14, 27): Em contraste com os reinos transitórios dos homens, o reino de Deus é eterno. Esta afirmação é um eixo teológico do livro: os reinos vêm e vão, mas o domínio do Altíssimo permanece para sempre.
אֱלָהּ דִּי גָּלֵא רָזִין (Elah di galeʾ rāzīn, “Deus que revela mistérios”; Dn 2.28, 29, 47): Este título associa a soberania de Deus à Sua onisciência. Ele não apenas governa, mas conhece e revela o que está oculto, inclusive os eventos futuros.
אֱלָהּ דִּי יָכִל לְשֵׁיזָבוּת (Elah di yākhil leshezāvut, “Deus que pode livrar”; Dn 3.17): A soberania divina se manifesta também em poder salvífico. Deus é aquele que tem capacidade real para intervir, proteger e libertar, como fez com os três hebreus na fornalha.
אֱלָהּ דִּי דָּנִיֵּאל (Elah di Daniyyel, “Deus de Daniel”; Dn 6.20, 26):Este título personaliza a relação entre Deus e Seu servo, mas também indica publicamente, diante dos impérios, que o Deus de Daniel é aquele que responde, salva e reina.
אֱלָהּ חַיָּא (Elah Ḥayyāʾ, “Deus vivo”; Dn 6.20, 26): Um título que contrapõe o Deus de Israel aos ídolos mortos da cultura pagã. O Deus de Daniel é vivo e age no mundo.
Títulos Hebraicos
A seção hebraica do livro, especialmente os capítulos apocalípticos finais, preserva títulos que enfatizam a majestade e a justiça de Deus em relação ao futuro de Israel e dos reinos do mundo. Entre eles, destacam-se:
עַתִּיק יוֹמִין (ʿAttiq Yōmīn, “Ancião de Dias”; Dn 7.9, 13, 22): Este título retrata Deus como o eterno, anterior a todos os tempos, sentado em um trono de juízo. Ele é o juiz cósmico, cuja sabedoria e longevidade superam qualquer autoridade humana. A imagem do Ancião de Dias aponta para a imutabilidade e a eternidade do governo divino.
שֹׁפֵט (wədīnâ yehiv, “o juízo foi estabelecido”; Dn 7.10, 22): Este título e sua forma verbal associada demonstram que é Deus quem estabelece o tribunal final. Nenhuma decisão humana prevalece contra Seu veredito. A soberania de Deus aqui é forense, legislativa e definitiva.
אֵל אֱלֹהִים (El Elohim, “Deus dos deuses”; Dn 11.36): Encontrado na seção profética do livro, este título eleva o Deus de Israel acima de todos os outros poderes espirituais ou políticos que os gentios possam venerar. Ele não é apenas um deus entre outros — é o soberano sobre todos.
Os títulos atribuídos a Deus no livro de Daniel não são apenas declarações doutrinárias: são confissões práticas da soberania divina no meio da crise. Sejam proferidos por profetas ou por reis gentios, em hebraico ou aramaico, cada um destes nomes contribui para o grande testemunho de que Deus é Rei dos reis e Senhor dos tempos.
Outras Expressões
Além dos títulos atribuídos diretamente a Deus, o livro de Daniel emprega diversas expressões aramaicas e hebraicas que, embora não funcionem como nomes próprios, reforçam de maneira decisiva a teologia da soberania divina. No aramaico, destaca-se a expressão עָבֵד כִּרְעֵהּ (ʿāḇēḏ kirʿēh, “faz segundo a sua vontade”; Dn 4.35), que enfatiza a liberdade absoluta de Deus para agir no céu e na terra, sobre anjos e reis, sem qualquer limitação. Essa soberania é reafirmada na frase וְאֵין מַן־יְהֵי עִם־יְדֵהּ (wəʾēn man-yehē ʿim-yedēh, “ninguém pode deter a sua mão”; Dn 4.35), e também em דִּי־שָׁלִיט עִלָּיָא בְּמַלְכוּת אֲנָשָׁא (dî-šāliṭ ʿillāyā bəmalkût ʾănāšā, “o Altíssimo tem domínio sobre o reino dos homens”; Dn 4.32), reforçando que nenhum poder terreno está fora do controle divino. Ainda mais interessante é a expressão דִּי־לָהֵן עָתִידָא לְהֶוְיָא (dî-lāhēn ʿātîḏā lehevayāʾ, “que certamente acontecerá”, Dn 2.45) que comunica a inevitabilidade e autoridade soberana dos decretos divinos.
O domínio de Deus sobre o tempo é igualmente destacado por expressões como מְהַשְׁנֵא עִדָּנִין וּזְמַנִין (məhašnē ʿiddānīn ûzəmānīn, “Ele muda os tempos e as estações”; Dn 2.21), e עַד־סוֹף עִדָּנָא (ʿaḏ-sōp ʿiddānā, “até o fim do tempo”; Dn 7.25) e מְהַשְׁנֵא עִדָּנִין (məhašnē ʿiddānīn, “Aquele que muda os tempos”, Dn 2.21), que comunicam que os períodos históricos de ascensão e queda dos reinos obedecem ao calendário determinado por Deus. A ideia de um plano divino estabelecido está presente também na referência ao כְּתוּב בְּכֶתֶב אֱמֶת (kətûḇ bəḵeṯeḇ ʾĕmeṯ, “escrito no livro da verdade”; Dn 10.21), que transmite a noção de que os eventos futuros já estão registrados e selados no conselho eterno do Senhor.
Outras expressões reforçam a ideia de que Deus julga e recompensará os fiéis. A imagem escatológica de um livro que registra os nomes dos salvos aparece em דָּכְתוּב בַּסֵּפֶר (daḵṯûḇ bassēp̄er, “inscritos no livro”; Dn 12.1), apontando para a soberania divina não apenas sobre a história, mas também sobre o destino eterno das pessoas. A expressão רַבָּה צָרָה (ṣārāh rabbāh, “grande angústia”; Dn 12.1) descreve o período de tribulação final, que, embora terrível, está delimitado e controlado por Deus. Finalmente, a palavra de consolo dirigida a Daniel sela a esperança escatológica com a frase וְתָקוּם לְגוֹרָלְךָ לְקֵץ הַיָּמִים (wətāqûm ləgōrāləkā ləqēṣ hayyāmīm, “e tu te levantarás para receber a tua herança no fim dos dias”; Dn 12.13), reafirmando que o Deus soberano é também justo, e garante a herança eterna aos que lhe são fiéis.
Essas expressões, embora variadas em forma e contexto, convergem para uma só mensagem: a soberania de Deus não é um conceito abstrato, mas uma realidade concreta que envolve tempo, julgamento, história e eternidade. O Altíssimo reina, conhece, determina, revela, intervém, e no fim, estabelece Seu Reino eterno, para consolo dos fiéis e juízo dos ímpios.
II. A Soberania na Parte Narrativa (Daniel 1–6)
A primeira metade do livro (capítulos 1–6) apresenta narrativas que evidenciam o domínio ativo de Deus na vida dos indivíduos e nas estruturas políticas de sua época. Deus entrega Jeoaquim nas mãos de Nabucodonosor (Dn 1.2), preserva os jovens hebreus no exílio (Dn 1.17), livra-os da fornalha (Dn 3), humilha o rei orgulhoso (Dn 4), sentencia o império corrupto (Dn 5) e salva Daniel da cova dos leões (Dn 6). Em cada episódio, a soberania divina se revela não como um conceito abstrato, mas como uma realidade concreta que intervém na história.
Como afirma Stephen R. Miller, “Yahweh é o Senhor da história”.3 Os capítulos narrativos demonstram que Deus não apenas observa, mas dirige os acontecimentos mundiais, operando por meio de reis gentílicos para julgar e salvar Seu povo.
Daniel 1: Deus estabelece o Seu Reino no Exílio
O capítulo inicial do livro de Daniel inaugura, de forma teológica e literária, a mensagem central da obra: Deus é soberano mesmo no exílio. Em Daniel 1.1–2, o autor afirma que foi o próprio Senhor quem entregou Jeoaquim, rei de Judá, e os utensílios do templo nas mãos de Nabucodonosor. Essa frase, longe de ser um mero detalhe histórico, interpreta o evento da queda de Jerusalém sob a perspectiva da soberania divina. À primeira vista, a invasão babilônica poderia parecer uma derrota do Deus de Israel frente aos deuses pagãos. Contudo, o texto deixa claro que o exílio não é o resultado do fracasso divino, mas parte do plano deliberado de Deus para julgar Seu povo e, ainda assim, conduzir a história segundo Seus propósitos soberanos.
Este início também estabelece o cenário geográfico e histórico para toda a narrativa: o povo de Deus está agora em terra estrangeira, sob domínio de reis gentios. Mas mesmo neste contexto adverso, Deus continua presente e operante. A transferência dos vasos do templo para o templo babilônico (1.2) simboliza esse deslocamento sagrado e a tensão entre fidelidade e assimilação cultural que marcará todo o livro.
A narrativa apresenta ainda duas figuras representativas que dominarão o enredo: Nabucodonosor, o rei estrangeiro, personifica os poderes gentílicos ao longo do livro; enquanto os filhos de Israel (1.3), liderados por Daniel e seus amigos, representam o povo de Deus em exílio. O rei, por sua vez, traça uma estratégia de domínio que visa conquistar mente e corpo dos exilados: ele muda seus nomes, impõe nova alimentação e promove reeducação cultural (1.4–5). Trata-se de uma tentativa de assimilação total, teológica, identitária e política.
No entanto, o restante do capítulo revela a contra-estratégia dos exilados: permanecerem fiéis ao Deus de Israel em meio a um sistema opressor. Deus honra essa fidelidade de modo soberano: é Ele quem concede a Daniel, Hananias, Misael e Azarias o conhecimento e a inteligência em toda cultura e sabedoria, e dá a Daniel, em especial, a capacidade de interpretar visões e sonhos (1.17). Ou seja, enquanto Nabucodonosor tenta moldar os jovens à sua imagem, Deus os capacita para testemunharem Sua glória dentro do império pagão.
Daniel 1, portanto, é uma proclamação da soberania de Deus sobre todos os aspectos da existência, especialmente política, cultural, intelectual e espiritual. Deus não foi derrotado; Ele está ativo, julgando, conduzindo e preservando Seu povo com propósitos eternos, mesmo em território hostil.
Daniel 2: Deus manifesta sua Soberania e Seu Reino é Eterno
O capítulo 2 marca o início da seção aramaica do livro de Daniel e introduz o primeiro de uma série de encontros entre os exilados judeus e reis gentílicos (caps. 2–6). Classificado como um conto de corte, mais especificamente, um conflito de corte, esse capítulo funciona como um palco para revelar a superioridade absoluta do Deus de Israel diante dos poderes e saberes humanos.
A narrativa começa com um impasse dramático: Nabucodonosor é atormentado por um sonho misterioso e exige dos sábios da Babilônia não apenas a interpretação, mas também o conteúdo do sonho, algo que nenhum deles consegue oferecer. Essa incapacidade expõe os limites do saber humano e a fragilidade da autoridade dos impérios (2.1–13). Em contraste, Daniel, por meio da oração e da comunhão com seus companheiros, busca ao “Deus do céu que revela os mistérios” (2.28). Ao receber a revelação, ele reconhece com humildade: “a sabedoria e o poder pertencem a Ele... Ele dá sabedoria aos sábios e entendimento aos inteligentes” (2.20–21).
Daniel 2.21 traz uma das declarações mais diretas da soberania de Deus: “Ele muda os tempos e as estações; remove reis e estabelece reis”.Essa afirmação não apenas serve como interpretação do sonho de Nabucodonosor, mas estabelece um tema recorrente em todo o livro: Deus é o único que tem autoridade sobre o curso da história humana.
A revelação do sonho apresenta uma estátua colossal composta por diferentes materiais, representando sucessivos impérios humanos. A imagem é poderosa, mas frágil em sua base. No clímax da visão, uma pedra “cortada sem auxílio de mãos” atinge os pés da estátua, derrubando-a e reduzindo-a a pó (2.34–35). Essa pedra, conforme Daniel interpreta, representa o reino eterno que o Deus do céu estabelecerá, um reino que jamais será destruído, nem entregue a outro povo (2.44). Aqui, a soberania divina é proclamada não apenas sobre o presente, mas sobre o futuro escatológico da história.
Além do conteúdo teológico, a estrutura literária do capítulo reforça seu propósito. Como parte de um quíiasmo aramaico que se estende de Daniel 2 a 7, o capítulo 2 se alinha com Daniel 7, onde quatro bestas representam impérios humanos e são finalmente julgadas e substituídas pelo reino do Filho do Homem. Ambas as visões apresentam a ascensão e queda dos reinos terrenos em contraste com o domínio eterno de Deus. O paralelo literário entre esses dois capítulos ressalta que a mensagem central do livro é a soberania universal e duradoura de Deus sobre todas as nações.
No fim do capítulo, Nabucodonosor, impressionado pela revelação, reconhece publicamente que o Deus de Daniel é “o Deus dos deuses e o Senhor dos reis” (2.47). Ainda que de forma inicial e limitada, esse reconhecimento destaca o impacto transformador da ação divina até mesmo nos corações dos reis pagãos.
Daniel 2, portanto, apresenta não apenas uma disputa de sabedoria na corte imperial, mas uma afirmação enfática da soberania de Deus sobre o tempo, o poder, os impérios e o futuro da história. O saber verdadeiro, a autoridade real e o reino eterno pertencem unicamente ao “Deus do céu”, cuja vontade é soberana e cujo propósito triunfará.
Daniel 3: A Soberania de Deus na Fidelidade do Seu Povo
O capítulo 3 de Daniel apresenta um dos episódios mais emblemáticos da fidelidade do povo de Deus diante da opressão imperial. Neste relato, o rei Nabucodonosor, símbolo da autoridade política e religiosa da Babilônia, ergue uma imponente estátua de ouro e exige, sob ameaça de morte, que todos os seus súditos se prostrem em adoração diante dela (3.1–6). Essa exigência representa não apenas uma demonstração de poder político, mas um desafio teológico direto: o rei coloca-se no centro da adoração e exige uma lealdade que compete exclusivamente ao Deus verdadeiro.
Nesse cenário de imposição e idolatria, destacam-se Sadraque, Mesaque e Abede-Nego, nomes babilônicos de Hananias, Misael e Azarias, como testemunhas corajosas da fé em exílio. Quando intimados a se conformarem ao decreto real, eles se recusam com firmeza, declarando: “Se formos lançados na fornalha de fogo ardente, o nosso Deus, a quem servimos, pode livrar-nos... mas, se não, fica sabendo, ó rei, que não serviremos a teus deuses nem adoraremos a imagem de ouro que levantaste” (3.17–18).
Essa resposta revela o coração da fé bíblica, uma confiança na soberania de Deus, independentemente das circunstâncias. Eles reconhecem o poder divino para salvar, mas deixam claro que sua fidelidade não depende da intervenção de Deus — ela é absoluta, mesmo diante da morte.
Nabucodonosor, furioso, ordena que a fornalha seja aquecida sete vezes mais e que os três sejam lançados nela (3.19–23). Contudo, em uma virada dramática, o rei vê quatro homens andando livres no fogo, sem sofrer dano algum, sendo o quarto “semelhante a um filho dos deuses” (3.25). Essa Cristofania (vem mais coisa por ai) revela que Deus não apenas livra Ele se faz presente com os Seus no sofrimento, reafirmando Sua soberania e proximidade.
Diante do milagre incontestável, o rei reconhece publicamente: “Não há outro deus que possa livrar assim” (3.29), e promove os três jovens a posições ainda mais elevadas no império (3.30). A fidelidade dos servos de Deus não apenas resiste ao poder dos reis terrenos, mas é vindicada e exaltada diante deles.
Do ponto de vista literário, Daniel 3 é o segundo de cinco contos de corte na seção aramaica do livro (caps. 2–6) e corresponde, dentro da estrutura quiástica de Daniel 2–7, ao capítulo 6, onde Daniel enfrenta a cova dos leões. Ambos os relatos mostram como o povo de Deus deve viver sob governos gentílicos: ora diante de monarcas hostis (Dn 3), ora sob reis mais favoráveis (Dn 6).
Além disso, a estrutura narrativa, da acusação, passando pela investigação e execução, até o livramento e a promoção, reforça a mensagem de que a soberania de Deus se manifesta não apenas em atos de poder, mas na sustentação daqueles que permanecem fiéis a Ele. O verdadeiro triunfo não é apenas escapar da fornalha, mas permanecer leal ao único Deus digno de adoração, mesmo diante da pressão extrema.
Daniel 3, portanto, não apenas exalta o poder soberano de Deus para livrar, mas também afirma Sua dignidade como único digno de adoração. A fidelidade dos três jovens serve de modelo para o povo de Deus em qualquer época: obedecer ao Senhor, mesmo quando isso exige enfrentar a fúria dos poderosos da terra.
Daniel 4: A Soberania de Deus na Humilhação e Restauração
O capítulo 4 de Daniel ocupa um lugar central na estrutura do livro e na sua teologia da soberania divina. Ele apresenta o testemunho autobiográfico de Nabucodonosor, narrado em grande parte em primeira pessoa, no qual o rei relata como foi humilhado por Deus após se orgulhar dos dons que havia recebido: domínio, poder, glória e honra. Ao final, após um período de disciplina que incluiu a perda da sanidade e da posição real, ele reconhece a superioridade do Deus Altíssimo e exalta seu eterno reino. Esta é a última aparição ativa de Nabucodonosor no livro, encerrando seu arco como personagem com uma confissão pública de fé e reverência ao Deus de Daniel.
A narrativa se distingue por sua estrutura literária única: ela é dividida entre trechos em primeira e terceira pessoa. Nabucodonosor abre e fecha o capítulo com suas próprias palavras (4.1–3; 34–37), relatando sua experiência de humilhação e restauração, e encerrando com uma doxologia ao Altíssimo. Entre essas seções, o texto assume a voz do narrador, que oferece o conteúdo da interpretação do sonho (por Daniel) e sua posterior realização. Essa alternância de vozes destaca o contraste entre a percepção do rei e a realidade interpretada pela autoridade profética de Daniel, e oferece ao leitor múltiplas perspectivas sobre os eventos.
O sonho em questão retrata uma árvore magnífica que alcança os céus e provê abrigo para todos os seres viventes — símbolo claro do poder e alcance do império de Nabucodonosor (4.10–12). Contudo, a árvore é cortada por um decreto celestial, deixando apenas o toco com raízes. A mensagem do sonho é direta: o rei será abatido, perderá a razão e viverá como animal por sete tempos, até reconhecer que “o Altíssimo tem domínio sobre o reino dos homens, e o dá a quem quer” (4.25). Daniel interpreta o sonho com coragem pastoral e apela ao rei para que se arrependa, oferecendo misericórdia ao oprimido como sinal de transformação (4.27).
O texto ressalta, de forma contundente, que o orgulho diante dos dons de Deus é uma afronta à Sua soberania. Doze meses após o sonho, o rei, ao caminhar no palácio, vangloria-se de seu poder e realizações: “Não é esta a grande Babilônia que eu edifiquei...?” (4.30). Imediatamente, a sentença divina se cumpre. Nabucodonosor é removido do trono, perde a razão e vive entre os animais, até que seus olhos se levantam aos céus e ele reconhece o domínio do Altíssimo (4.31–34). O momento da restauração ocorre apenas quando o rei assume sua completa dependência do governo de Deus.
Essa narrativa funciona como contraponto direto à história de Belsazar em Daniel 5, dentro da estrutura quiástica de Daniel 2–7. Enquanto Nabucodonosor é humilhado, se arrepende e é restaurado, Belsazar será igualmente confrontado pela soberania divina, mas não demonstrará arrependimento e acabará destruído. Juntas, essas duas narrativas representam o núcleo teológico do livro: os reinos humanos são subjugados ao juízo e à graça do Deus que concede e remove autoridade conforme Sua vontade soberana. A relação entre o rei humano e o Rei divino é o tema condutor que emerge com força em ambos os episódios.
No final, a soberania de Deus é proclamada pelo próprio Nabucodonosor com uma das declarações mais grandiosas de todo o Antigo Testamento: “Ele faz o que quer com os exércitos do céu e com os habitantes da terra; não há quem possa deter a sua mão, nem lhe dizer: Que fazes?” (4.35). Essa confissão representa não apenas a conversão pessoal de um rei, mas a proclamação pública da verdade central de Daniel: Deus reina soberanamente sobre tudo e todos, especialmente sobre os que pensam estar no controle. O capítulo encerra com a restauração do rei à sua glória anterior e com a confirmação de que a honra verdadeira pertence somente ao Altíssimo.
Daniel 4, portanto, não é apenas o relato da humilhação e restauração de um rei terreno, mas uma proclamação de que Deus, o Altíssimo, reina soberanamente sobre todos os reinos da terra, concedendo e removendo autoridade conforme Sua vontade, e chamando até os mais poderosos ao reconhecimento de Sua glória.
Daniel 5: A Soberania de Deus no Juízo dos Reis
O capítulo 5 de Daniel apresenta um novo rei e uma repetida lição: Deus é soberano sobre os reinos humanos, e nenhum governante pode desafiá-Lo impunemente. Belshazar, identificado como “filho” de Nabucodonosor (provavelmente seu sucessor, ou descendente dinástico), organiza um banquete luxuoso e profano. Em gesto de desprezo pelo Deus de Israel, ele manda buscar os utensílios sagrados do templo de Jerusalém — que haviam sido levados por Nabucodonosor (Dn 1.2) — e os usa para beber e brindar aos deuses pagãos de prata, ouro, bronze, ferro, madeira e pedra (5.1–4). O gesto é mais que uma afronta ritual: é uma provocação direta ao Deus que havia humilhado seu antecessor.
Em resposta imediata, uma mão aparece e escreve uma mensagem enigmática na parede do palácio real (5.5). Nenhum dos sábios babilônicos consegue decifrá-la, repetindo o padrão dos capítulos anteriores em que a sabedoria dos impérios falha diante da revelação divina. A rainha (mãe?) então recomenda Daniel, conhecido por sua sabedoria e por ter interpretado sonhos e mistérios no reinado anterior. O rei o convoca e lhe oferece recompensas caso interprete a inscrição (5.13–16). Daniel, no entanto, recusa os presentes e, antes da interpretação, pronuncia um discurso de julgamento contra o rei.
A comparação com Nabucodonosor é o centro da acusação de Daniel: “Mas tu, Belsazar, seu sucessor, não te humilhaste, embora soubesses de tudo isso” (5.22). O profeta recorda que Deus havia exaltado Nabucodonosor, mas também o humilhado até que ele reconhecesse que o Altíssimo governa sobre os reinos dos homens (cf. cap. 4). Belshazar, porém, sabendo disso, não aprendeu. Em vez de reverenciar a Deus, exaltou-se em arrogância e profanou o que era sagrado. A inscrição na parede — Mene, Mene, Tequel, Parsim — é então interpretada por Daniel como uma sentença de juízo: Deus contou os dias do reino de Belsazar, pesou-o na balança e achou-o em falta, e decidiu dividir seu reino e entregá-lo aos medos e persas (5.26–28).
Diferente de Nabucodonosor, que foi restaurado após reconhecer a soberania de Deus, Belsazar não demonstra arrependimento algum. O contraste entre os dois capítulos (Dn 4 e 5), que formam o centro do quiasmo literário de Daniel 2–7, reforça o tema central do livro: Deus concede autoridade aos reis, mas exige deles humildade e reverência, e julga com justiça os que O desafiam. Nabucodonosor reconheceu o domínio do Altíssimo e foi restaurado; Belsazar o ignorou e foi destruído. Essa oposição não é apenas narrativa, mas teológica: trata-se da diferença entre humildade e arrogância diante do Deus soberano.
A narrativa termina com brevidade e contundência. Naquela mesma noite, Belsazar é morto, e seu reino é entregue a Dario, o medo (5.30–31). O império babilônico, símbolo de orgulho e glória humana, cai em um instante. Este evento também marca uma transição decisiva na história dos impérios, conforme antecipado na visão da estátua de Daniel 2: o ouro cede lugar à prata: Babilônia dá lugar ao reino dos medos e persas. A soberania de Deus não apenas julga reis individuais, mas orquestra a sucessão dos impérios, dirigindo a história universal conforme Sua vontade.
Daniel 5, portanto, não é apenas uma advertência moral contra a arrogância real. Ele declara, com poder literário e teológico, que a soberania de Deus é absoluta, inegociável e eficaz, pois Ele exalta e humilha, estabelece e remove, conforme Sua justiça. Os reinos dos homens passam, mas o Reino do Altíssimo permanece.
Daniel 6: A Soberania de Deus na Lealdade Silenciosa do Seu Povo
Daniel 6 encerra a série de cinco narrativas aramaicas sobre os encontros entre exilados judeus e reis gentios (Dn 2–6), antes de o livro passar ao gênero apocalíptico. Agora sob o domínio medo-persa, Daniel serve com excelência e fidelidade, e logo se destaca entre os novos administradores nomeados por Dario. Com inveja de sua posição, um grupo de oficiais conspira contra ele, sabendo que a única maneira de incriminá-lo seria encontrar algo relacionado à sua fé (6.5). Assim, manipulam o rei para decretar uma lei que proíbe, por trinta dias, qualquer oração que não seja dirigida ao próprio rei — uma armadilha perfeita para alguém cuja fidelidade a Deus é conhecida.
Apesar do decreto, Daniel permanece firme em sua devoção. Ele continua orando três vezes ao dia em sua casa, com as janelas abertas em direção a Jerusalém, como sempre fizera (6.10). Diferentemente do episódio da fornalha ardente em Daniel 3, onde a desobediência civil dos amigos de Daniel foi pública e direta, aqui a fidelidade é silenciosa, privada, mas não escondida. Ainda assim, ela é suficiente para custar-lhe a vida. O rei, ao perceber a armadilha em que caiu, tenta salvar Daniel, mas a lei dos medos e persas não pode ser revogada. Relutante, Dario manda lançar Daniel na cova dos leões, com a esperança de que o Deus a quem ele serve continuamente o livre (6.16).
Durante a noite, Dario jejua e não consegue dormir. Ao amanhecer, corre até a cova e chama por Daniel. Para sua alegria, Daniel responde, ileso, preservado por Deus, que enviou Seu anjo para fechar a boca dos leões (6.22). O livramento é total, e a integridade do profeta é evidenciada não apenas diante de Deus, mas diante de toda a corte. Assim como os amigos de Daniel na fornalha, ele é libertado da morte, exaltando o nome de Deus e revelando Sua superioridade sobre todas as leis humanas e expectativas políticas.
O paralelo com Daniel 3 é evidente e intencional. Ambos os relatos envolvem o desafio da fidelidade religiosa frente à autoridade imperial, a conspiração de rivais ciumentos, a ameaça de morte por desobediência civil e o livramento milagroso. Porém, enquanto os três jovens se recusaram a adorar um ídolo, Daniel se recusa a abandonar a adoração verdadeira. Um ato de omissão em um caso (não se prostrar), e de comissão no outro (continuar orando), ilustram duas faces da mesma fidelidade. Juntos, esses capítulos mostram que a fé verdadeira se manifesta de formas diversas, conforme o contexto, mas sempre com o mesmo compromisso inegociável com Deus.
A resposta de Dario ao milagre é uma das doxologias mais belas do livro. O rei decreta que todos devem reverenciar o Deus de Daniel, “porque ele é o Deus vivo e permanece para sempre; o seu reino não será destruído, e o seu domínio não terá fim” (6.26). Essa confissão ressoa com os temas dos capítulos anteriores e antecipa as visões escatológicas dos capítulos seguintes. Assim, o testemunho de Daniel funciona como uma preparação teológica para os tempos de sofrimento e esperança apocalíptica que se seguirão: o povo de Deus pode permanecer firme em meio ao caos, porque serve ao Rei eterno cujo domínio transcende todos os impérios humanos.
O capítulo termina destacando que Daniel prospera sob o reinado de Dario e também de Ciro, o persa (6.28). Mesmo sob diferentes reis e impérios, a fidelidade de Daniel permanece constante e é repetidamente recompensada por Deus.
Daniel 6, portanto, não é apenas uma história de livramento individual, mas uma poderosa proclamação de que a soberania de Deus se afirma tanto no silêncio da oração quanto no livramento espetacular, e que a fidelidade, mesmo quando solitária e arriscada, jamais é em vão aos olhos do Rei eterno.
A seção narrativa do livro de Daniel (caps. 1–6) forma uma unidade coesa que proclama, de múltiplas formas, a soberania do Deus Altíssimo. Em cada capítulo, Deus se revela como aquele que estabelece reis e os remove, que concede sabedoria e livramento, que julga com justiça e exalta os que lhe são fiéis. Sua soberania se manifesta tanto em atos públicos de intervenção miraculosa quanto na fidelidade silenciosa de Seus servos em meio à opressão. Por meio de sonhos decifrados, reis humilhados, fornalhas e covas superadas, o livro ensina que Deus não é apenas o Senhor de Israel, mas o soberano absoluto sobre todos os povos, impérios e tempos.
Essa soberania, no entanto, não se apresenta de maneira abstrata ou distante: ela é relacional, justa e comprometida com o testemunho dos que permanecem fiéis a Ele. Daniel e seus companheiros, mesmo em terra estrangeira, representam uma comunidade que confia no Deus que reina acima de todas as autoridades humanas. Suas histórias preparam o leitor para os capítulos apocalípticos que seguem, nos quais essa mesma soberania será estendida à história futura e à consumação dos tempos. Até lá, o Deus de Daniel continua a reinar, sustentando, julgando, redimindo, e chamando Seu povo a viver com fé, mesmo sob os reinos deste mundo.
III. A Soberania na Parte Visionária (Daniel 7–12)
A segunda metade do livro (capítulos 7–12) expande a temática da soberania divina para o âmbito escatológico. Aqui, Daniel recebe visões sobre o destino das nações e o futuro do povo de Deus. O Altíssimo é descrito como aquele que dá o reino ao "filho do homem" (Dn 7.13-14), um símbolo messiânico de autoridade universal e perpétua. O domínio dos quatro grandes impérios (Babilônia, Medo-Pérsia, Grécia e Roma, segundo a maioria dos intérpretes) é descrito como limitado, subordinado e temporário — contrastando com o reino eterno que Deus estabelecerá.
Como observa Eugene H. Merrill, o livro celebra a soberania divina mesmo em meio ao exílio e à ruína de Jerusalém. Deus usa tanto Babilônia, para julgar, quanto a Pérsia, para restaurar. Nenhum império escapa de Sua mão. “Os potentados humanos e seus deuses são vistos como realmente são — meros instrumentos nas mãos do Onipotente.”4 Na segunda parte do livro, composta por visões apocalípticas e escritas em aramaico e hebraico, a soberania divina é reiterada de forma escatológica.
Daniel 7: A Soberania de Deus em Meio ao Caos das Nações
Daniel 7 marca a transição entre as narrativas de exílio (caps. 1–6) e as visões apocalípticas (caps. 7–12), servindo como ponto de ligação entre o passado e o futuro, entre o presente sofrimento e a esperança escatológica. Em uma visão noturna, Daniel contempla quatro grandes animais emergindo de um mar revolto, um claro símbolo da instabilidade e da violência dos impérios humanos. Essas bestas representam reinos terrenos sucessivos, cada um marcado por arrogância, opressão e poder autodestrutivo. A cena inicial transmite um quadro de caos e domínio humano desgovernado. No entanto, o foco do capítulo não permanece nas bestas, mas na intervenção decisiva de Deus.
O centro teológico da visão é o trono do Ancião de Dias, que surge para estabelecer julgamento (7.9–10). Em contraste com o frenesi das nações, o trono de Deus é descrito com imagens de estabilidade, fogo e pureza. Esse tribunal celeste não é uma abstração, mas o palco do juízo final contra os impérios opressores. A chegada do Filho do Homem, que se apresenta diante do Ancião de Dias e recebe um domínio eterno e indestrutível (7.13–14), representa a manifestação final da soberania divina. Ao contrário dos reinos terrenos, marcados por brutalidade e efemeridade, o reino do Filho do Homem será eterno, universal e justo.
Daniel 7 se alinha estruturalmente com o capítulo 2: ambos apresentam quatro reinos seguidos por um quinto, eterno e divino. No capítulo 2, esse reino é simbolizado por uma pedra cortada sem auxílio de mãos; aqui, é representado por um ser humano exaltado, “um como o Filho do Homem”. A semelhança entre os capítulos reforça o tema da soberania divina, mas o capítulo 7 aprofunda o drama ao mostrar que, antes do triunfo final, o povo santo será oprimido por um chifre pequeno, uma figura arrogante que desafia o Altíssimo e persegue os santos (7.21–25). A tensão escatológica é clara: o sofrimento dos justos não nega a soberania de Deus, mas antecipa sua manifestação plena em juízo e restauração.
O capítulo termina com a promessa de que o reino será dado “ao povo dos santos do Altíssimo” (7.27). Isso não apenas confirma a vitória do reino de Deus, mas também envolve o povo fiel como co-herdeiros dessa vitória. O domínio de Deus, portanto, não é distante ou impessoal; é um governo que se realiza com e para o Seu povo, em resposta à opressão, e por meio de julgamento justo. A soberania divina é reafirmada com vigor: ela não apenas resiste ao caos da história, mas o redime, trazendo justiça final à terra.
Daniel 7, portanto, apresenta uma das visões mais impactantes da Bíblia sobre a soberania de Deus. Em meio às bestas do caos, aos impérios em guerra e à perseguição dos santos, o Deus do céu permanece no trono, julgando com justiça, exaltando o Filho do Homem, e assegurando que o Seu reino eterno será estabelecido. A visão oferece à comunidade exilada e a todos os que sofrem sob os poderes deste mundo, uma certeza inabalável: o Senhor reina, e o Seu domínio jamais passará.
Daniel 8: A Soberania de Deus sobre o Tempo e os Impérios
Daniel 8 apresenta uma segunda visão apocalíptica, agora com foco mais estreito nos impérios da Pérsia e da Grécia. A narrativa, contada inteiramente em primeira pessoa por Daniel, descreve um carneiro de dois chifres que domina até ser confrontado por um bode veloz com um chifre proeminente. Esse chifre é quebrado e, em seu lugar, surgem quatro, dos quais emerge um chifre pequeno, figura que personifica arrogância e violência contra Deus e Seu povo. A visão causa perturbação em Daniel, pois revela não apenas conflitos imperiais, mas também a profanação do templo e a perseguição dos santos.
A soberania de Deus é enfatizada ao longo do capítulo, mesmo diante da ascensão de reis prepotentes. O anjo Gabriel é enviado para interpretar a visão, revelando que todos os eventos ocorrem “no tempo determinado do fim” (8.19). Não há lugar para o acaso ou para o domínio absoluto do mal: Deus mantém controle preciso sobre os tempos, os reinos e seus líderes. Mesmo o mais arrogante dos governantes será “quebrado, sem intervenção humana” (8.25), uma forma vívida de declarar que o juízo pertence exclusivamente a Deus, e que Ele mesmo executará Sua justiça no tempo certo.
Embora semelhante à visão dos quatro animais em Daniel 7, especialmente pelo uso de figuras animais e pela presença de um chifre pequeno, o capítulo 8 possui distinções importantes. Aqui, a atenção se volta àquilo que acontece após o retorno dos judeus à terra, com foco específico no santuário e sua purificação (8.14). A mudança de idioma do aramaico para o hebraico também reforça essa transição de perspectiva: do universo imperial e exílico para os eventos que envolvem diretamente o povo de Deus em seu território. A soberania divina não apenas rege os impérios, mas cuida do culto, do templo e do tempo.
A estrutura literária do capítulo, marcada por repetições de expressões como “olhei, e eis que” ou “busquei entendimento, e eis que”, intensifica o senso de espanto diante dos planos divinos. A multiplicidade de visões, distribuídas em três blocos, convida o leitor a considerar, de forma progressiva, a complexidade dos eventos e a certeza de que, apesar da confusão e do sofrimento, Deus tem as rédeas da história em Suas mãos. Mesmo quando Daniel não compreende plenamente o significado da visão, a mensagem central permanece inabalável: Deus governa soberanamente sobre a ascensão e queda das nações, delimitando seus dias com precisão e justiça.
Daniel 8, portanto, declara que nenhum império é eterno, e nenhum mal escapa ao alcance do juízo divino. Por mais que o chifre pequeno pareça triunfante, sua derrota está decretada desde o início. A soberania de Deus se manifesta não apenas na preservação do Seu povo, mas no controle dos tempos, na limitação do mal e na certeza de que, ao final, o santuário será purificado. O povo de Deus pode se manter firme, mesmo diante da opressão, sabendo que o Altíssimo reina e o faz com precisão absoluta.
Daniel 9: A Soberania de Deus na Oração e na História Redentora
O capítulo 9 de Daniel revela a soberania de Deus por meio da oração intercessória e da resposta reveladora que se segue. Ao estudar os escritos do profeta Jeremias, Daniel compreende que os setenta anos de exílio preditos estavam próximos do fim. Em vez de passividade diante dessa profecia, ele responde com uma oração fervorosa de arrependimento em nome de todo o povo, reconhecendo os pecados de Judá e suplicando misericórdia para Jerusalém e seu templo (9.1–19). Essa oração é expressão de confiança na soberania de Deus, que governa os tempos, disciplina com justiça e restaura com graça.
A resposta divina não tarda. O anjo Gabriel aparece a Daniel com uma revelação que vai além da expectativa imediata de retorno do exílio. Deus mostra que os setenta anos fazem parte de um plano maior — setenta “semanas” ou períodos designados por Ele, e que a restauração prometida incluirá redenção definitiva por meio do Messias (9.24–27). Aqui, a soberania de Deus se manifesta não apenas no controle do presente, mas na orquestração precisa de toda a história redentora: o perdão dos pecados, a inauguração da justiça eterna e a unção do Santo dos santos.
Diferentemente das visões simbólicas dos capítulos anteriores, a revelação de Daniel 9 é verbal, direta, e marcada pela presença de um mensageiro celestial. O foco não é a sucessão de reinos ou bestas apocalípticas, mas Jerusalém, o povo de Deus e o plano divino de redenção. A soberania de Deus, nesse contexto, é demonstrada na sua capacidade de ajustar ciclos históricos ao Seu propósito eterno. Ele não apenas revela o que há de vir, mas mostra que o curso da história está subordinado à Sua justiça, misericórdia e fidelidade ao pacto.
O capítulo também evidencia a soberania de Deus na escuta e resposta à oração de Seu servo. A revelação que Daniel recebe é ativada por seu clamor — não como uma causa determinante, mas como parte do plano divino que envolve a participação ativa de seus profetas. O Deus soberano é também um Deus relacional, que acolhe a súplica de Daniel, reafirma Suas promessas e revela que o tempo está sob Seu domínio, não do acaso nem dos reis da terra.
Daniel 9, portanto, apresenta um retrato da soberania divina que governa os tempos e os ciclos da história com justiça e graça. Ao mesmo tempo, exibe um Deus que responde à oração com revelação, e cuja fidelidade conduz todas as coisas em direção à consumação messiânica. Diante dessa soberania absoluta e misericordiosa, resta ao povo de Deus confiar, orar e esperar, sabendo que o tempo pertence ao Senhor.
Daniel 10-12: A Soberania de Deus na Vitória Final
A última grande visão do livro de Daniel (caps. 10–12) é a mais extensa e detalhada, oferecendo um retrato poderoso da soberania de Deus em meio ao conflito final da história. O cenário é estabelecido no terceiro ano de Ciro, rei da Pérsia (10.1), e Daniel encontra-se em luto e oração. Ao final de três semanas, ele tem uma visão arrebatadora de um ser celestial, um homem vestido de linho (10.5), cuja aparência o deixa prostrado e sem forças. Este mensageiro, vindo da parte de Deus, o fortalece e lhe promete revelar o que está escrito no “livro da verdade,” uma expressão que enfatiza que todos os acontecimentos que se seguem já estão determinados por Deus e estão sob Seu absoluto controle.
O conteúdo revelado ao profeta, a partir de Daniel 11, descreve com precisão histórica a sucessão de reis e impérios, desde a Pérsia até os tempos dos selêucidas, com destaque para a figura de Antíoco IV Epifânio, um rei arrogante que persegue os fiéis e profana o templo de Deus. Esta narrativa, ainda que fortemente enraizada na história, transcende o período descrito, oferecendo um modelo repetível de como o mal se manifesta por meio de governantes ímpios ao longo da história. Contudo, mesmo nos períodos mais sombrios, a mensagem permanece firme: Deus está no controle do curso da história e dos limites do mal.
A soberania divina é reafirmada não apenas na condução dos eventos, mas também no juízo final. Ao final do capítulo 11 e início do capítulo 12, a visão se desloca para o futuro escatológico: haverá um tempo de angústia sem precedentes, mas os que forem achados inscritos no livro serão salvos (12.1). Em meio ao sofrimento, Deus promete a ressurreição: "uns para a vida eterna e outros para vergonha e desprezo eterno" (12.2). Esta é uma das afirmações mais explícitas do Antigo Testamento sobre a soberania de Deus sobre a própria morte e Sua justiça eterna na restauração final dos fiéis.
No encerramento da visão (12.5–13), Daniel presencia uma cena simbólica com dois outros seres celestiais que discutem sobre o tempo do fim. Quando questiona sobre o desenlace dos acontecimentos, o homem vestido de linho responde que essas palavras estão seladas até o tempo determinado. Daniel é instruído a seguir seu caminho com esperança: “tu, porém, vai até o fim; pois descansarás e, ao fim dos dias, te levantarás para receber a tua herança” (12.13). Essa declaração final sela o tema que permeia toda a visão: a soberania de Deus garante tanto o fim do mal quanto a recompensa dos que lhe permanecem fiéis.
Daniel 10–12, portanto, culmina a teologia do livro ao proclamar que, embora os poderes humanos pareçam prevalecer temporariamente, é o Senhor quem escreve, revela e cumpre a história. Nenhum rei, decreto ou perseguição escapa à Sua autoridade. O sofrimento dos fiéis não é esquecido, mas está inscrito no plano soberano que culminará em justiça, ressurreição e herança eterna. A esperança do povo de Deus não repousa na estabilidade dos impérios, mas na fidelidade do Deus que reina desde o início até o fim.
Conclusão
O livro de Daniel nos oferece uma teologia da soberania divina, entrelaçada com uma esperança escatológica que sustenta o povo de Deus em meio às crises da história. Desde os primeiros capítulos narrativos até as últimas visões apocalípticas, Daniel proclama com clareza que o Senhor reina, não como um espectador distante, mas como o Deus Altíssimo que estabelece e remove reis, revela mistérios, livra da morte, governa os tempos e sela o fim com justiça e redenção. Essa soberania não é arbitrária, mas orientada pela aliança, pela fidelidade de Deus às Suas promessas e pela certeza de que Seu reino eterno triunfará sobre todos os impérios passageiros da humanidade.
O livro de Daniel, em sua unidade literária e teológica, apresenta a soberania de Deus como seu tema central. Seja nas narrativas de livramento e juízo, seja nas visões apocalípticas e profecias escatológicas, a mensagem é clara: Deus reina. Ele estabelece e remove reinos (2.21), revela mistérios (2.28), julga com justiça (5.27) e entregará o domínio eterno ao Filho do Homem (7.14). A fidelidade de Deus às suas promessas e seu controle soberano da história oferecem consolo e esperança ao povo exilado e a todos os que, como Daniel, vivem entre impérios humanos, mas pertencem ao Reino eterno de Deus.
Em tempos de exílio, sofrimento ou aparente silêncio divino, o livro de Daniel nos convida a olhar além das circunstâncias imediatas e a confiar no Deus que dirige os rumos da história com sabedoria e propósito. A fidelidade de Daniel e seus companheiros, a oração penitente no capítulo 9, e as visões que apontam para a ressurreição dos justos (12.2–3) revelam que a soberania de Deus não exclui a responsabilidade humana, mas a inspira. A soberania divina encoraja o povo de Deus a permanecer fiel, mesmo quando os sistemas terrenos parecem prevalecer, porque o domínio final pertence ao Rei eterno. O livro de Daniel é ao mesmo tempo um chamado à fidelidade perseverante e uma fonte de esperança indestrutível: o Senhor reina e Seu reino não terá fim.
Por isso, Daniel não é apenas um livro de profecias. É um chamado à fidelidade perseverante e uma fonte inesgotável de esperança viva. O Deus que revelou sonhos, silenciou feras e antecipou o fim, ainda está no trono. E como está escrito: “O Deus do céu estabelecerá um reino que jamais será destruído... Ele o destruirá e porá fim a todos esses reinos, mas esse reino durará para sempre” (Daniel 2.44). Este é o testemunho de Daniel. Esta é a esperança da Igreja. Este é o Reino do nosso Deus.
J. Paul Tanner, Daniel, Evangelical Exegetical Commentary (Bellingham, WA: Lexham Press, 2020), 113.
As reflexões sobre a teologia da Soberania de Deus nesse artigo foram fortemente influenciadas pelo comentário exegético que mais tenho usado na preparação para a série de Daniel: Wendy Widder, Daniel: God’s Kingdom Will Endure, ed. Daniel I. Block, Zondervan Exegetical Commentary on the Old Testament (Grand Rapids, MI: Zondervan Academic, 2023). Para uma visão abrangente, literária, exegética e teológica do texto de Daniel, considere seriamente esse comentário.
Stephen R. Miller, Daniel, vol. 18, The New American Commentary (Nashville: Broadman & Holman Publishers, 1994), 50.
Eugene H. Merrill, “The Book of Daniel,” in The World and the Word: An Introduction to the Old Testament (Nashville, TN: B&H Academic, 2011), 412–413.
Vai expor todo o livro, Pastor Marcelo?