Talvez você não saiba, mas um nascimento virginal não é tão raro quanto você imagina.
De acordo com um estudo recente, nos Estados Unidos, cerca de uma em cada 200 mulheres afirma ter engravidado virgem, como demonstra a pesquisa “Like a Virgin (Mother)” – “Como uma (mãe) virgem” – da Universidade da Carolina do Norte, realizada em Chapel Hill e publicada pouco antes do Natal, em 2013. O conceito de um nascimento virginal é tão inacreditável que foi necessário um estudo para descobrir as razões por trás dessas afirmações improváveis nos dias de hoje. O fato é: um nascimento virginal é simplesmente impossível.
Essa, provavelmente, é a razão pela qual a história de Jesus ter nascido de uma virgem é considerada inconcebível. Na verdade, há muito tempo, Celso já havia afirmado que a igreja primitiva inventou o nascimento virginal de Jesus porque a verdade era muito feia para ser publicada. Segundo ele, Jesus seria o filho ilegítimo de um relacionamento adúltero de Maria (Orígenes, Contra Celso, 1.28).1 Acusação semelhante também aparece na antiga tradição rabínica de Israel, conhecida como o Talmude, que afirma que Maria foi infiel ao marido (Talmud Shabat 104b; Sanhedrin 67a).2
Um problema de tradução?
Em outras palavras, um nascimento virginal é tão improvável que uma explicação mais plausível precisa ser apresentada. E foi exatamente isso que aconteceu no documentário Bible Secrets Revealed – Segredos Bíblicos Revelados (History Channel). No primeiro episódio da série, Francesca Stavrakopoulou, Elaine Pagels e Bart Ehrman argumentam que a história do nascimento virginal de Jesus é “essencialmente um erro de tradução”. De acordo com eles, a profecia de Isaías 7:14 – “Eis que a virgem conceberá, e dará à luz um filho” – não aponta para uma virgem, mas para uma moça em idade de se casar, que, devido a um erro de tradução, mais tarde foi entendida como uma profecia cumprida na gravidez da Virgem Maria.
O argumento apresentado
O argumento apresentado no documentário Bible Secrets Revealed em suporte a essa conclusão é triplo:
A palavra hebraica usada no texto original de Isaías 7:14 não significa virgem, mas sim uma moça em idade de se casar;
A palavra usada na versão grega do Antigo Testamento (Septuaginta) em Isaías 7:14 não significa uma moça em idade de se casar, mas sim uma virgem;
Portanto, essa má tradução abre a porta para a possibilidade de Mateus ver em Maria o cumprimento de uma profecia.
Em outras palavras, se Mateus tivesse lido o texto em hebraico, ele não teria interpretado o nascimento virginal como o cumprimento da profecia. No entanto, a validade dessa conclusão depende da validade de seus pressupostos: se uma das duas primeiras afirmações não for verdadeira, a conclusão também não será. Assim, é necessário analisar melhor as duas afirmações para verificar a validade da conclusão.
O Significado de ‘Almah em Isaías 7:14
Em primeiro lugar: é verdade que a palavra hebraica em Isaías 7:14 significa uma moça em idade de se casar e não uma virgem? A palavra hebraica usada neste versículo é ‘almah, e ela aparece apenas nove vezes em todo o Velho Testamento (Gn 24:43; Ex 2:8; Is 7:14; Sl 46:1; 68:26; Pv 30:19; Ct 1:3; 6:8; 1 Cr 15:20). Normalmente, essa palavra é usada para descrever uma moça, pois a ideia central de ‘almah está mais ligada à juventude e puberdade do que à experiência sexual da mulher descrita. Pode ser traduzida como moça pronta para casar (Ex 2:8; Sl 68:26), uma moça para casar (Pv 30:19) ou simplesmente uma jovem (Ct 1:3).
A noção de virgindade imaculada não é o significado primordial dessa palavra; a palavra apropriada para esse sentido seria betulah. No entanto, às vezes ‘almah pode significar uma moça virgem em um sentido secundário. Em Gênesis 24, por exemplo, Rebeca é descrita como jovem (v.16, 55 e 57), solteira (v.28 e 36-51) e também virgem (v.16). Nesse capítulo, ela é apresentada como na‘arah (jovem) e como betulah (virgem), o que sugere que uma moça em idade de casar provavelmente também era virgem.
Mas é possível ver esse significado em Isaías 7:14? É muito improvável que esse seja o caso. Em Isaías 7:14, a expressão a virgem conceberá é formada por uma cláusula sem verbo, cujo tempo depende dos verbos apresentados no contexto. Neste caso, o verbo conceber (do hebraico yalad), um particípio ativo, poderia implicar em uma ação que está acontecendo ou prestes a acontecer, o que nos oferece duas interpretações possíveis:
Se ela já está grávida, então ‘almah não significa virgem, mas uma jovem mulher; ou
No momento da profecia, ela era virgem, mas deixaria de ser na concepção de seu filho.
De qualquer forma, é difícil entender ‘almah aqui como uma indicação de gravidez assexuada. Portanto, podemos concluir que é verdade que a palavra ‘almah em Isaías 7:14 não apresenta o conceito de uma virgem, mas descreve uma jovem mulher prestes a conceber e dar à luz seu filho.
O Uso de Parthenos na Septuaginta
Em segundo lugar: é verdade que a palavra grega usada em Isaías 7:14 significa apenas uma virgem? A palavra usada na Septuaginta para traduzir ‘almah é parthenos. No Novo Testamento, essa palavra é usada para descrever tanto um jovem do sexo masculino (Ap 14:4) quanto uma jovem do sexo feminino (1 Co 7:28), com ênfase em sua virgindade. Às vezes, porém, a palavra pode descrever uma mulher solteira (At 21:9), mas mesmo nesse caso, é possível argumentar que a ênfase está em sua pureza sexual.
No entanto, no grego clássico, parthenos tinha um significado mais abrangente e poderia ser aplicado geralmente a uma jovem mulher em idade de se casar, com ou sem foco em sua virgindade. Pausânias, por exemplo, usou o termo para descrever a deusa virgem Atena (Descrição da Grécia, 5.11.10; 10.34.8), enquanto Heródoto descreveu a deusa virgem Ifigênia (Histórias, 4.103). Geralmente, parthenos era usada para descrever uma donzela, uma mulher jovem, sem atenção especial à sua experiência sexual. Homero, por exemplo, usou essa palavra para descrever uma jovem sem foco especial em sua vida sexual (Ilíada, 22.127) e mulheres solteiras que não eram virgens (Ilíada, 2.514). À luz desses fatos, parece incorreto afirmar que a palavra grega parthenos é usada apenas para descrever uma virgem.
Mas é possível que esse significado geral também estivesse presente na Septuaginta? Acreditamos que sim. Gênesis 24 apresenta Rebeca como uma jovem (na‘arah), que era virgem (betulah), mas quando Jacó reconta a história, ele a chama de ‘almah (v.43), como se essas palavras tivessem significados intercambiáveis. Mais interessante ainda é o fato de que a Septuaginta traduz todos esses termos (na‘arah, betulah, ‘almah) como parthenos, o que sugere que essa palavra grega tinha um significado mais abrangente quando a Septuaginta foi produzida. Isto é reforçado pelo fato de que a Septuaginta descreve como parthenos uma moça que foi estuprada (Gn 34:3). Portanto, é justo dizer que o campo semântico de parthenos na Septuaginta era mais amplo do que na literatura do Novo Testamento e que a tradução de Isaías 7:14 utilizou uma palavra flexível para descrever um texto com significado complexo.
O que aprendemos com isso?
Portanto, a conclusão apresentada no programa Segredos Bíblicos Revelados não está correta: a Septuaginta não traduz erroneamente ‘almah para parthenos. Essa era uma tradução aceitável para o termo diante da perspectiva dos tradutores. Isso significa que Mateus não foi enganado pela tradução ao associar o texto à concepção de Jesus, e sua interpretação de Maria como cumprimento da profecia de Isaías 7:14 também não pode ser invalidada dessa forma.
Vale lembrar que Lucas, uma testemunha independente de Mateus, também apresenta Maria como parthenos (virgem), sem qualquer menção a Isaías 7:14, o que sugere que a tradição cristã do nascimento virginal não dependia da interpretação que o Evangelista apresentou à profecia. Como observa R. T. France:
“A reflexão sobre Isaías 7:14 ilustra a expressão de uma crença cristã já existente na concepção virginal de Jesus” 3
Orígenes, Contra Celso 1.28: “Pois ele [Celso] o representa disputando com Jesus e o refutando, segundo acredita, em muitos pontos; e, em primeiro lugar, acusa-o de ter inventado o nascimento de uma virgem, censurando-o por ter nascido em uma certa aldeia judaica, de uma mulher pobre do campo, que ganhava a vida fiando, e que foi expulsa de casa por seu marido, um carpinteiro de profissão, por ter sido condenada por adultério. Depois de ter sido rejeitada pelo marido e vagado por algum tempo, ela deu à luz Jesus de maneira desonrosa, como uma criança ilegítima.”
Talmud Shabat 104b: “Ensinou-se em uma baraita que o rabino Eliezer disse aos rabinos: “Acaso o infame Ben Stada não levou feitiços do Egito gravados em cortes em sua carne?” Eles responderam: “Ele era um tolo, e você não pode citar prova de um tolo. Não é assim que a maioria das pessoas escreve.” A propósito, a Gemara pergunta: Por que o chamavam de Ben Stada, se ele era filho de Pandera? Rav Ḥisda disse: “O marido de sua mãe, que agia como seu pai, chamava-se Stada, mas quem teve relações com sua mãe e o gerou foi chamado Pandera.” A Gemara questiona: “Mas o marido de sua mãe não era Pappos ben Yehuda?” Em vez disso, conclui-se que o nome de sua mãe era Stada, e ele foi chamado de Ben Stada em referência a ela. A Gemara então pergunta: “Mas a mãe dele não era Miriam, que trançava o cabelo das mulheres?” A Gemara explica: “Isso não é uma contradição. Stada era apenas um apelido, como dizem em Pumbedita: ‘Esta se desviou [setat da] de seu marido.’”
Sanhedrin 67a: “A Gemara pergunta: Por que ele é chamado Ben "Stada" se era filho de Pandera? Rav Chisda diz: Talvez o marido de sua mãe fosse Stada, mas o amante de sua mãe fosse Pandera. A Gemara contesta, dizendo que o marido era Pappos ben Yehudah. Portanto, sua mãe era Stada. A Gemara também questiona isso, dizendo que sua mãe era Miriam, que trançava o cabelo das mulheres. Como dizem em Pumbedita: "Esta se desviou (səṭat dāʾ) de seu marido.”
Nesses trechos, Ben Stada é uma referência a Jesus (cf. B. Corley, “Trial of Jesus,” em Dictionary of Jesus and the Gospels, ed. Joel B. Green e Scot McKnight (Downers Grove, IL: InterVarsity Press, 1992), 842.)
R. T. France, Scripture, Tradition, and History in the Infancy Narrative of Matthew, 1981, p. 249.
Perfeito! Boa elucidação sobre este tema tão debatido e mal interpretado!